Há tentações merecedoras da quebra de princípios

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Dois jovens sentavam-se no meio de uma rua qualquer na cidade de Fruta, no interior de Buenos Aires. Tratava-se de uma noite iluminadíssima, pois além dos postes cumprindo seu papel de luz pública, a lua parecia inteiramente comprometida com o mesmo objetivo. Estava fria, uma das mais nos últimos anos, e ambos estavam indevidamente vestidos, o que causava a infernal sensação de gelo.
Mas eles não tinham problema com isso.
Júlio olhava para Rafaella no fundo do mar castanho. Dava pra sentir quase, somente pela cena, a dor ali sentida por ele. A saudade de casa e dela, alguém que inevitavelmente tornaria-se uma lembrança. Mas ele lutava contra estas dores fortemente. Todos o viam. No jeito de abrir os olhos lentamente, esperando, a cada piscada, ver-se novamente na terra natal; no descaso com quase tudo relacionado àquela terra; na cada vez maior quantidade de tempo gasta olhando um horizonte amiúde inexistente, fazendo-o assim encarar uma parede. Só ela perdia esses sinais.
Rafaella estava ocupada tentando guardar cada detalhe daqueles momentos, não em interpretá-los. Notava na companhia agradável, nos caprichos desnecessários, mas apreciados, feitos por ele – como o abrir de portas abandonado há tempos pelo cavalheirismo, o suporte em problemas quaisquer, sorriso em momentos desesperadores para ele também – e, claro, o silêncio da fuga. Sim, a fuga momentânea de sua pequena vida na pequena cidade de Fruta.
Tudo bem que pequena tinha só o nome- para chegar em praticamente qualquer lugar levava, no mínimo, trinta minutos a pé. A população ultrapassava dez mil, mas cada bairro era tão fechado em si que o número pouco importava- um dia Fruta chegou a 200 mil habitantes e ainda se vivia a vida de cidade pequena, onde se conhecem todos os vizinhos e os filhos geralmente seguem o caminho dos pais. Mas, na época, Fruta acabara de passar por um êxodo, então o efeito de “pequenez” estava muito acentuado.
A rua onde se encontravam era uma das muitas cheias de casas abandonadas (umas recém e outras já a muito). Além disso, era fora de qualquer rota de carro, um caminho estúpido para fazer-se a pé, e com irregularidades, tornando impossível o percurso de bicicleta, portanto um paraíso confidencial de uma argentina e um brasileiro, o berço de um romance doído perpetuado na memória, porém com curto prazo de validade. Numa das casas, uma mais nova, provavelmente recém-comprada e logo largada quando vista a situação da cidade, havia um monte de madeiras soltas. Júlio pegou algumas e montou uma pequena fogueira para ambos. Agora, não precisavam de mais nada: teriam fogo, comida, bebida e a companhia um do outro.
Após acender a tal fogueira (pequena, mas com tal poder de aquecimento), ele limpou as mãos em alguma folha molhada ali perto e sentou-se ao lado dela. Segurou sua mão, levou-a até sua boca e foi beijando dedo por dedo até chegar na aliança. Ah, maldita aliança.
Não havia sido dada por ele; não, aquele caso era bem mais antigo e duradouro. A infidelidade dela ainda não havia sido consumada, mas pouco importava pois a do outro havia (e como). Todos sabiam, todos falavam- menos ela, que nem sabia, não falava ou ouvia, mas pensava muito sobre- e ignoravam, sem falar um pingo para Rafaella.
Nem sequer Júlio, a pessoa mais próxima de um amante tido por ela até ali (e seria durante algum tempo até o fim do namoro no qual mais se amava amantes do que se sentia amado) ousava falar diretamente sobre o assunto. Às vezes emergia, em meio aos flertes tão leves e inocentes mas mal intencionados e carregadissimos de emoção, o tópico. Marcelito mais uma vez estava nas festas de amigos “só para macho”, mas nas quais as poucas prostitutas da cidade sempre acabavam entrando. Ou uma viagem ao campo de 1 semana, porém estendida na metade para 2, talvez 3, na qual uma rapariga se encontrava junto- Ah, como aquelazinha vai pagar… como ousa, praticamente na minha frente!- mas Rafaella nunca sequer levantara o tom de voz, sequer reclamara sobre qualquer aspecto daquele tratamento.
Olhando para o maldito anel, Júlio sentia pena e ódio. Pena por ver uma garota com tanto potencial, tanto talento, conteúdo, interesse na vida, presa num relacionamento nada frutífero como aquela cidadezinha pequena e sem graça (boa por alguns meses, mas nada para a vida) e ódio por aquela relação estúpida estar no meio de um amor tão fervoroso e forte, tal como as últimas chuvas de fevereiro, primeiras de março, que começavam do nada e cessavam em um piscar de olhos, após terem destruído o máximo possível. Ele sabia quando essa paixão havia de acabar, e o fim estava próximo: 4 dias.
Não leve-o a mal; Júlio não era indesejável, tampouco bobo. Ele sempre aparecia nas tais festas de machos e nunca pagava uma prostituta. Ele ocasionalmente flertava com uma ou duas meninas. Porém, quando aparecia Rafaella, tudo acabava. Se ele estava com uma puta em casa, esta sairia pela porta de trás se chegasse a garota. Se estava numa festa e ouvia da boca de um qualquer da “tristeza de Rafaella”, sairia dali no mesmo momento, aparecendo na frente da janela do seu quarto para recitar a ela os mais belos sonetos feitos por ele no momento. Não estava com ela, por isso não havia traição, mas seu desejo de ter algo o obrigava a conservar a imagem pura tida por ela dele.
Aceitar ir praquela rua havia sido o primeiro passo, tomado algumas semanas atrás. Ele caçara o templo para um amor secreto durante meses e quando finalmente o encontrou, conseguiu convencê-la. Foi o primeiro sinal percebido por ele de que, quem sabe, ela considerasse a infidelidade com ele- ou quem sabe, com as loucuras do amor, um namoro.
O sinal não era falso. Rafaella, uma das garotas mais certas da cidade, tão fiel aos seus princípios (como o da própria fidelidade), tão convicta de que Marcelito seria seu último namorado agora caia num tipo de amor diferente de praticamente todos tido por ela até ali. Era uma vontade de pular nos braços dele em um momento aleatório pela certeza absoluta de que seria segurada e abraçada, e aquele abraço era o necessário para estabilizar sua vida já toda definida pela vida de seus pais, determinados a nunca sair daquela cidade. Ela dava a mão como se não soubesse da intenção de Júlio em beijá-la dedo por dedo, centímetro por centímetro, satisfazendo-se assim de modo tão inocente…
Ninguém poderia saber. Em meio a todos, ela agia (diferentemente do seu namorado estúpido) para manter as aparências de ali haver um platonismo eterno- pois não havia uma sequer alma a desconhecer a evidente queda de Júlio por Rafaella, mas as mesmas almas nem suspeitavam da reciprocidade do sentimento. O próprio Marcelito estava ciente mas sua arrogância e prepotência o impediam de imaginar sua eterna fisgada fazendo-o corno (como ele fazia-a sem dó nem piedade). E foi por essa necessidade de anonimato, já imaginada por Júlio, que se encontrou uma pequena rua de casas abandonadas, perfeita para fazer-se uma fogueira na quinta-feira a noite, quando todos haviam de dormir para o dia seguinte (inclusive a menina, mas ela ignorou isso até 1 semana depois, após o amante ir embora, deixando-a com o mesmo sempre de costume). Mesmo numa cidade do tamanho do ovo, o amor era tanto e o desespero igualmente espantoso que Júlio fez da cidade uma metrópole, onde crimes são cometidos a luz do dia e no nariz de uma multidão sem que ninguém o veja. E esse crime estava sendo cometido em tal discrição a fazer até Rafaella esquecer onde morava e ser levada facilmente nas descrições de Júlio.
Ele falava de São Paulo. Contava da Rua dos Trilhos, que em sua simplicidade não tinha nada demais além dos antigos bondes de domingo e no resto da semana os trilhos descançando para mais uma volta ao passado longínquo, mas Júlio falava de andar por ali de bicicleta e cair, de pegar diversos ônibus- mas você não se perde com tantos ônibus? Ouço você falar de incontáveis só perto da sua casa…- para sair com amigos, ficantes, namoradas, de açaí (que mesmo ela nunca ter visto um na vida já tinha como sobremesa predileta, só pela delícia de ouví-lo contar). Também a contava sobre a Avenida Paulista, com toda sua imensidão horizontal- tantos estabelecimentos, a Livraria, os hippies vendendo miçangas a preços ridículos, os casais andando como se fosse lua de mel, a barulheira de megalópole- e vertical- os prédios de incontáveis andares, as torres de rádio a brilhar quando anoitecia, os enfeites de natal colocados para iluminar ainda mais um lugar que nunca conheceu ou havia de conhecer a noite. Júlio falava de levar Rafaella para a Livraria. Os olhos curiosos dela brilhavam sempre que ouviam ele mencionar um lugar tão impressionante: três andares, praticamente todos os livros desejáveis além de CD’s, DVD’s e Blu-ray’s, um café amigável a convidar os clientes a ler um pouco os livros recém-comprados. Ele a levaria ali, e eles sentariam no chão perto da sessão de nacionais, pois nada a agradava mais que poesia (principalmente quando ele a declamava) e ele leria para ela um livro inteiro de Manuel Bandeira.
Além disso também chamava atenção a Galeria. Ela gostava de tango e salsa (vê-la dançar foi um dos prazeres esquecidos por Júlio quando voltou para o Brasil), mas algo sobre um lugar tão diversificado como a Galeria do Rock sempre a convidou. Ela olhava para os anéis nos dedos dele (todos com um significado, mas nenhum de compromisso, o que tornava tudo mais possível, portanto mais complicado e palpável) e desejava alguns para ela, mas também um filtro dos sonhos, uma camiseta, um colar, qualquer coisa passível de compra naquele paraíso. Ele prometia a ela comprar tudo o que não pudesse se ela desejasse. Ele também a falava de ver o pôr-do-sol, mais bonito que qualquer um existente (não que ela conhecesse outro além do da sua varanda e o do Édem- apelido carinhoso da rua anônima), com os prédios enormes e antenas fazendo a sirueta de cidade perfeita, tal como era. As promessas nunca acabavam, ao contrário da vida útil daquele escape.
Quando viu, ela se encontrava abraçada de costas com Júlio, dando beijos carinhosos em suas mãos. Como ela se deixara atrair? Como havia sido seduzida a trair os princípios máximos de sua índole? Ela não tinha feito absolutamente nada, mas só o fato de estar ali, de ter um carinho tão profundo quanta a curiosidade de como seria beijá-lo já servia para pesar sua consciência. Ao mesmo tempo, porém, havia o peso da despedida. Ela podia ignorar e não consumar o fato, mas e depois ficaria o resto de sua vida imaginando como seria se… Se o que? Se eles ficassem, ali naquele momento? Quatro dias antes de ele voltar para sua terra natal e (muito provavelmente) nunca mais pisar em Fruta, faria tanta diferença assim?
Quando esta dúvida surgiu na cabeça de Rafaella, Júlio demonstrou quase um poder de leitura mental, pois já voltava a falar de como havia de levá-la com ele; afinal, ela mesma já tinha dito que nada a esperava ali além do destino de seus pais- viver parcialmente felizes numa cidade onde eles sempre seriam pastores (sua filha, a filha do pastor), seguir a rotina semanal de visitar os amigos (não só os mais próximos) até aos poucos estes morrerem e nunca mais conversarem sobre os antigos tempos de colégio e ensino médio, de besteiras feitas 40 anos atrás e nunca mais algo parecido tinha sido tentado. Júlio a oferencia algo a mais, oferecia um mundo diferente.
Infelizmente ambos não sabiam que parte do amor proibido é e sempre será a eterna promessa nunca cumprida.
Mesmo assim, com tanta culpa e tanta dúvida, Júlio conseguiu virá-la e encará-la. Olhava profundo nos olhos novamente, mas desta vez com menos admiração e mais cobrança. Ela sabia exatamente o porquê. Ela sabia as perguntas. A certeza desejada por ele, o desejo tido. As respostas haviam de ser categóricas: não. Ela não podia ficar com ele ali, não por falta de desejo, mas por excesso de princípios. Se ela não estivesse em um relacionamento, sem dúvida, mas ela pensou a frente, assim como ele pensou todo momento; não havia razão para terminar um relacionamento (mesmo que problemático) de 3 anos por um amor de alguns dias.
Não obstante, quando ele cobrou dela a certeza da reciprocidade, quando segurou a nuca dela e a trouxe tão perto que ela sentia seu rosto transpirar calor, quando falou como quem chora por dentro mas é firme como pedra por fora, ela não conseguiu. Valores são valores e podem ser trocados por alguns instantes para o prazer momentâneo- se ninguém viu, não aconteceu; se não aconteceu, não há culpa; se não há culpa, arrependimento não existe.
E ali, na rua abandonada eles se amaram por mais 4 dias, todos no mesmo horário seguindo a madrugada inteira, mas com um livro de poesia diferente por noite.
Na manhã na qual Júlio foi para Buenos Aires para pegar o avião para São Paulo, Rafaella perdeu uma aula para levá-lo na estação de ônibus. Ninguém nunca soube do caso dos dois de fato, mas presumiu-se uma amizade extremamente forte que a lembrança futura havia construído entre ambos. O ônibus já estava de partida quando Júlio beijou a amante de despedida e chorou. Ela manteve-se intacta, porém com os olhos avermelhados de falta de sono e vontade enorme de desabar, mas olhou para seu paulista e lhe agradeceu por todos os momentos espectaculares dados por ele. Ele agradeceu de volta, mas disse a ela palavras que seriam anotadas por ela, e relidas diversas vezes com o passar dos anos.
“Foge, Rafa. Esta cidade pode ser o seu mundo hoje- e que mundo bom- mas o que há lá fora é maior. É um mundo que te merece e você merece-o. Seu destino pode estar aqui, mas você pode levá-lo para passear em Buenos Aires ao menos uma vez e conhecer a cidade. Tenho certeza que assim como o meu está em São Paulo, o seu está lá. Adeus.”

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Uma (rápida) história de amor dinâmico- As Crônicas de um Fotógrafo

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Conheci Maria num lugar diferente: em baixo de um poste.
A gente se trombou ali, deixamos as malas caírem e aconteceu, como se fossemos Eduardo e Mônica. Sem querer, trocamos algumas folhas (por acaso, importantíssimas pra minha prova em 1 semana), e em uma delas tinha o nome dela, e no momento em que percebi o sumiço de tudo, procurei-a imediatamente no Orkut (sim, ainda era assim naquela época).
Começamos a conversar um pouco; ela estava cursando engenharia, eu psicologia. Ela amava física, eu gostava mais de estudar o físico humano. Ela amava São Paulo e o Rio, eu queria era Dubai, Buenos Aires e Toronto. Eu chamei ela pro teatro, ela quis ver filme alugado (posteriormente seria um netflix, mas enfim).
Rápidamente nos tornamos amigos. Ela namorava um tal de Gabriel (gostava do cara mesmo) e eu tava caindo por ela. Digamos que eu não tinha ciúme, mas mesmo assim ela nunca dava muita bola… até o dia que eu chamei ela pra ir pro campinho tirar foto.
Nesse dia ela me viu de um jeito diferente. Como psicólogo, sempre amei estudar a mente através de expressões artísticas e me tornei um fotógrafo. Olhando para ela, tirando suas fotos… ela simplesmente me amou. Em cada flash, senti-me mais amado e mais importante. Em cada pose ela se deixava amar mais, se deixava mais aberta. Uma semana depois, Maria terminou com Gabriel.
Eu não acreditei quando me contou. Ela veio em minha casa, abriu a porta sem pedir pra entrar e chorou. Não porque tinha terminado um namoro de 2 anos, mas porque pensava mais em mim no que em Gabriel. Ela chorava enquanto pedia desculpas por confundir tudo e estragar nossa amizade, sem saber se tentava voltar para ele, mesmo não o amando.
Eu olhei para ela e disse que não havia porque se desculpar, pois o sentimento era recíproco e a relação podia crescer (e muito) com o tempo e profundidade.
Nesse dia, nos beijamos pela primeira vez.
Já estávamos terminando a faculdade, então logo começamos a morar junto- já nos conhecíamos a 1 ano e meio, mesmo o namoro sendo recente.

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Foto por Márcia Kaori

A gente saía sexta para o bar, sábado pro cinema, domingo em casa. Fomos pra Dubai, moramos 1 ano no Rio e voltamos pra Sampa. Visitávamos exposições, teatros e vimos todos os filmes do Netflix. Ela via todas as minhas fotos, eu tirava um monte dela. Eu atendia pessoas na rua de baixo, ela fazia projetos na sala de casa.
Passaram-se 3 anos após o início dessa rotina, e algo extraordinário aconteceu: uma casa foi construída na frente daquele poste e tiveram que derrubá-lo. Felizmente, o dono da casa não quis deixar o lugar escuro, e colocou um “lustre” velho para ajudar… peguei minha câmera anteontem, tirei uma foto dali e mostrei para Maria. Não contei que vou pedir ela ali, mas…
Será que ela aceita?

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Boca

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Bom dia.- Diz o homem à secretária.
Ela responde, com um calorosíssimo “bom dia”, indagando o porquê de tanta felicidade. Boa pergunta. “Deve ter sido a minha boa noite de sono”. Boa… acordou tantas vezes que não tem nem como chamar aquilo de sono. Pensou em tantas coisas que não há como falar que descansou. Mas claro, foi uma boa noite de sono. “Então tenha um bom dia!”, diz ela, fingindo que acredita em sua fala. Ok. Segue seu caminho à sua sala.
Entrando lá, tenta ligar o computador. Falho, não consegue. Respira profundamente e pensa em outra coisa. pega seu bloco e ameaça escrever estratégias. Em sua cabeça, ele está longe… está numa praça. Não há em sua mão uma caderneta para táticas de marketing para maionese e condimentos, por mais que paressece muito interessante. Não, ele divulga uma revolução. Ele berra, tentando alcançar com sua voz todos que ali estão. Todos olham, como se saíssem de seus movimentos repetitivos. Escrever, devorar, dormir. Dirigir, lamber, pousar. Anotar, engolir, jazer.
Ele pisca. Meio-dia. O computador ligou e não há sequer uma palavra em seu bloco. Acontece. Ele sai do escritório e vai com seus colegas ter um bom almoço.
“E o Coringão?! Cara que jogo!”
“A Katy nunca esteve tão gostosa…”
“O iPhone 8 vai lançar logo logo, estou louco para ver”
Ouve tudo aquilo com um falso sorriso e um olhar de desprezo. Vai ao banheiro, ao fim do almoço. Quer escovar os dentes, pois higiene é um dos únicos privilégios para cultivar sua individualidade. Pequena? Sim. Porém, completamente sua.
No mundo no qual ele vive, ele não se sente mais do que um corpo numa grande colônia, seguindo as outras formiguinhas. Higiene, pensamento e livros são as únicas coisas que o fazem sentir fora dessa grande massa manipulada.
Enxágua a boca com plax. Cospe, mas não só ele sai no ato, junto do líquido: sua boca. Ela cai ali, qual fosse um aparelho. Assusta-se. Pega, desesperadamente, tentando colocá-la em seu lugar. Que pena dele. Tenha calma, caro leitor. Você vai entender. Só espere.
Ele não obtém exito. Para falar a verdade, algo mais curioso ainda acontece com nosso protagonista. O local onde supostamente deveria estar sua boca não existe. Não há “buraco”.
Ele vai ao refeitório e tenta comunicar-se com seus amigos, que não notam absolutamente nada diferente nele, e falam “Venha! Vamos se atrasar!”. Ele fica perplexo. Como não veem? Coloca com cuidado seu órgão no bolso e vai.
Na rua, anda e desanda, e ninguém dá a mínima ao pobre homem. Pisa no pé de um, mas não consegue pedir desculpas. Quando seu pé toca o bueiro, sente os ratos correndo. Talvez tenham se assustado com a anomalia de sua boca. Chega no seu escritório, passando pelo elevador.
Aquela moça está ali. Olhos azuis, cabelo preto… ah! Sem dúvida daria umas chances para ela. Porém, sem boca para sequer pronunciar uma palavra, como beijaria? Ele não sabe o que fazer, então, faz uma tentativa de sorrir com os olhos, e não sabe se conseguiu, pois o sorriso recebido, talvez, em troca, pode ser tanto falso como verdadeiro. Nunca saberá.  Ela desce a um andar dele. Por alguns segundos ele talvez conseguisse…
Décimo terceiro andar.
Chega na sua sala, pega um bloco de notas e uma caneta, vai a tentativa de comunicar-se com a secretária.
– Você vê isso?
– Mas, senhor, não vejo nada… cortou o cabelo?- Ele se irrita. Entra novamente no seu ambiente, isolando-se.
Pisca novamente. 6h. O céu se põe lentamente na Paulista. Ele sai do escritório e vai de carro para casa.
Pouco antes de deitar-se, tateia o bolso. Já havia esquecido, ela estava ali. Inutilmente, tenta pressioná-la contra o lugar onde deveria estar, mas desiste quando corta sua pele. Deita, fecha seus olhos e faz o tal dormir.
3h da manhã. Acorda. Olha para ambos lados. A insônia nunca passa…
Vai a cozinha, enche um copo d’água, vai beber e se molha inteiro. Esqueceu da localização bizarra de sua boca; ele respira profundamente, finge que não tem sede e volta à cama.
5h da manhã. Ele continua chamando isso de sono. Ridículo…
O leitor deve estar se perguntando algumas coisas: “por que a falta da boca?” “Como isso é possível?” “Por que ninguém nota?” “Tenho certeza que a 1a coisa que qualquer pessoa faria é procurar um médico; ou há um problema físico, ou mental!” Calma, relaxe. É a coisa mais normal do mundo ficar sem boca!
O homem acorda. Abre os olhos, e desta vez são 9h. Mais algum minutos o fariam ficar atrasado, então, vai tomar seu banho. Toma um susto ao olhar o espelho. Ainda não acostumou-se com aquela aberração.
Lembra-se da reunião que terá. Como participaria? Termina seu banho de água gelada para acordar, pega uma xícara, que não tomará, de café e entra em seu carro.
Chegando no escritório, encaminha-se para a grande reunião do dia. Todos passam a falar.
“As vendas de ketchup estão caindo…”
“A geração Z não tem interesse em condimentos, temos de criar novas estratégias!”
“Deveríamos investir nos bebês.”
O homem, como sempre, tem idéias. Ah, como tem! Nunca consegue falá-las, porém, desta vez, ele levanta sua mão com convicção e faz jogos de mão, cabeça e corpo todo na tentativa de expressar alguma de suas opiniões, benéficas à empresa.
O chefe olha, e clama:
– Mas é claro! O senhor tem toda razão
Porém, o homem se desaponta. Olha o planejamento rápido feito pelo chefe e vê exatamente o contrário do que quis dizer. Perplexo, atônito. “Como?! Eu nunca falei isso! O ano será perdido desse jeito! Ah, dane-se. Depois que arquem com isso. Vai cair em mim, mas eu não ligo. Nunca quis estar nessa merda de lugar mesmo.”
Tenta novamente expor-se, dessa vez em outro tópico. Falho. A mesma coisa acontece. “Ninguém me entende”. Na verdade, entende. Mas tudo, menos o intencionado.
O homem sai da reunião e vai à sua sala, pisca. Não está mais ali. Sente novamente sua boca, e está na mesma praça. Gritos e gritos. Mas dessa vez é rápido, pois ele pisca e está em seu carro. Chega em casa, deita e dorme. Agora, sequer tenta beber água, escovar os dentes. Escreve na prancheta. Devora um sanduíche. Dorme em sua cama. Dirige pela Paulista. Lambe o prato. Pousa em seu travesseiro. Anota numa planilha. Engole um pedaço. Jaz em seu leito.
Um dia, o homem se olha no espelho. “Ora, até que fico bem desse jeito”.
Dessa vez, chega no escritório, olha para a secretária. Há algo estranho, mas com ela, não ele. Ela dá bom dia, ele responde. Como responde?! Mas ele não tem boca! Espera, mas o que é boca?! Ele olha novamente a moça, e, no fundo dos seus olhos, não vê nada diferente. Pisca, olha um pouco abaixo.
Onde está seu sorriso?

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Privado

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Queima. Minha pele se contorce a cada fração de segundo pelo toque do sol. Poderia ser pior. Ele podia estar inteiro me tocando, mas essa grade o impede. Queria poder quebrar, rasgar, destruí-la. Pular para minha liberdade enfim, sem medo de perder tudo. Esse pensamento foi bobo. Afinal, que tudo, se justo isso me faz querer sair deste lugar?
O silêncio é insuportável. Não o de fora, inexistente perante os gritos e exigências feitos pelo meu carcereiro, mas o de dentro, pertencente a uma alma cansada de se defender, pronta para tomar o necessário, ainda que seja entorpecente e doloroso. Me pego a admirar essa dor. Ela provém de algo mais antigo, antecedente à minha prisão, simbolizado por essa grade: o suicídio. “Como admirar o suicídio?” você deve estar se perguntando. É simples, na verdade. Ele criou essas grades. Claro, ela representa algo muito maior, mas… ele criou. A necessidade de manter prisioneiros (assim como eu) longe das janelas criou grades.
Mantenho-me o mais longe possível delas para ficar longe da luz, no canto desse lugar. Olho para o céu de longe e desejo vê-lo escuro e vazio, como numa noite nublada. Seria o momento perfeito para deitar-me nesse chão frio e, pouco a pouco, morrer de dentro para fora. Faço o começo desse processo agora mesmo, encarando o teto sem graça, e tento lembrar dos bons momentos da minha vida.
Minha tentativa é falha, e as únicas lembranças que me vem são das minhas costas vermelhas, machucadas pelo abuso de poder dos donos do meu cárcere. Em seguida, recordo momentos de negros de minha consciência, quando minha mente ficou tão barulhenta, e sinto falta disso. É menos desesperador pensar que o barulho dentro de mim impedia ouvir o externo que, mesmo com o silêncio da minha cabeça, o mundo parece mudo. Esse processo acaba em um segundo, quando ouço o grito (provavelmente repetido milhares de vezes):
– Vem logo moleque, eu to mandando!

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Decolagem

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Começa estável. Calmo e imóvel. Parece completamente seguro, sem risco de falhas. Mas essência e aparência é um jogo bem conhecido pela espécie humana, bem dominado. Nessa fase, a única coisa existente é perigo. Tranquilidade acalma o espírito, mas não fortalece as bases. Qualquer pequeno movimento dá a sensação eminente de desastre.
Tragédia. O escuro tranquilo mostra o quão possível é esse fim. O desastre da acomodação. A tragédia do final sem meio. Este é o verdadeiro perigo, o qual não se tem consciência. O início do escape desse fim é tenso e medonho. O mundo parece estar acabando. Na barriga, só o frio da espectativa, do desejo. Desejo de sair da monotonia, pela emoção afinal. Tudo parece pequeno.
O tamanho das coisas é distorcido, através da óptica. Não podemos cobrar nossa visão de quem não tem nossa vivência, pois uma é consequência da outra. A luz recebida é forte e espalhada, como se, sem querer, essa cidade inteira estivesse me iluminando.  
O escuro da incerteza me possui. Simplesmente ao fechar os olhos perco o medo dessa penumbra e finalmente posso ter calma novamente. Mas dessa vez, uma firme, não ignorante. Uma certa estabilidade vinda do conhecimento e confiança. Agora só há movimento, puro e contínuo, e é está a razão do meu ser.
Ser. É esse meu objetivo final. Não simplesmente estar ou ficar, mas ser. Um contínuo e não estático, em sua essência. Mas essência e aparência é um jogo bem jogado pela espécie humana.
 
 

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Liberdade de Shaolin

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Abro meus olhos e vejo os primeiros raios de sol entrando pela janela. Não é nem perto do meu horário, mas eu não dou importância para isso. Meu instinto me diz que é hora de levantar. Olho o cômodo pouco iluminado e acendo uma vela; As coisas estão exatamente como as deixei no dia em que cheguei no Templo.

Hoje, já tem 13 anos do meu abandono da vida de governador civil e do início da minha procura pela paz. Passei por uelemá, mas não cheguei nem perto do que procuro. Sentia-me igualmente poderoso, influenciador, alguém que, por ter maior conhecimento (adquirido após um tempo de estudo hábil do Alcorão e da Suna), tira a humanidade dos meus semelhantes. Depois, fui ao campo, trabalhei como um semi-servo, achando que, por obedecer, iria apaziguar meu espírito. Fui igualmente falho. Eu estava abandonando minha própria humanidade. Por mais que eu quisesse o bem nos 3 lugares pelos quais passei, eu me sentia corrompido, tanto por “mandar” quanto por obedecer.

Cheguei ao ponto de achar que, na minha terra natal, a China, nunca encontraria a verdadeira paz. Viajei, mas não durou, pois nada me apetecia, desde a beleza da terra do Papa até o luxo dos Sultões. Até que, com todo esse conflito interior, decidi passar uns dias num mosteiro afastado de tudo. O Templo de Shaolin, o mais próximo que cheguei do que minha mente pedia.

Aceitaram-me de início, me alocaram neste quarto e me explicaram como era o funcionamento do lugar. Homens e mulheres não eram distinguidos, todos podiam frequentar qualquer parte ou ambiente, sem restrições. Não havia regra, mas, normalmente, os almoços eram feitos ao meio-dia pelo sol, e os jantares quando a lua já se apresentava dominante.

Os lugares eram o quarto, os campos de plantação e gado, a sala dos espelhos, o “refeitório” (que funcionava como cozinha também), um salão usado para enfermagem e outro vazio. Não havia cozinheiro, faxineiro, camareiro ou camponês. Ali, os “bens” eram fruto do trabalho individual e o excesso era comunitário, para emergências. Por se tratar de um mosteiro, eu obviamente pensei que, por não ser religioso, iria ficar uns dias para a meditação (que era feita em qualquer lugar), porém, estou aqui a mais de 5 anos.

Saio do quarto, me encaminho para o campo. As plantações de arroz se alastram por quilômetros, e o gado, que dorme, é suficiente para alimentar uma cidade, mas a simplicidade do mosteiro envolve (inconscientemente) deixar os animais viverem seu estado natural, e a natureza também.

Shaolin fica num vale praticamente sozinho na região, por isso, você pode se ver cercado de montanhas. Na maior delas, nota-se uma escadaria enorme, que dá numa pequena construção vermelha e dourada, onde ficam as águas. É para lá que vou.

Piso nos degraus da escadaria, gelados pelas horas sem contato com o sol, que a essa altura, apresenta um nascer esplêndido. Cada passo que dou relaxa mais o meu psico que a ótima noite de sono que tive, e me faz sentir cada pequeno músculo no meu corpo, fazendo uma espécie de Nirvana.

Ao fim da minha subida, vejo claramente toda a construção. Os pilares de madeira avermelhados, com todas as suas linhas características da árvore que foi cortada, O sol está quase alinhado com o topo da pequena casa, dando uma sensação de queimação na minha nuca. Apesar de ter feito uma subida de 3 horas, não me sinto cansado. Entro, e na água descem 3 fios de luz, posicionados em três pontos de divisão na jóia da Roda do Dharma desenhada ali.

Sento-me ali, fecho os olhos e medito, entrando num transe que só acaba quando abro meus olhos novamente. Sinto a força da claridade contra meus olhos, mas ela vai abaixando, e olho para o céu pela grande janela a minha frente, notando nas nuvens passando, carregadas e negras como meu espírito antes de encontrar esse lugar.

Mais ao fundo, nuvens leves com as quais me identifico, porém meu desejo é chegar ao céu azul. Ao olhar abaixo, vejo a imensidão da floresta que cerca os mares de morros, um verde convicto e belo, ainda não tocado pelos ambiciosos, só conhecidos pelos homens em seu estado mais natural. Mas, entre todas essas arvores belas, vejo uma movimentação que eu já conheço: a formação militar clássica da Guerra  Civil que está acontecendo.

O mais surpreendente não é a formação em si, mas o fato de ser facílimo de notar o quão feridos estão os soldados. Em aproximadamente 4 horas, eles chegarão ao templo, lugar que suponho ser o destino.

Desço calmamente as escadas, e na metade do meu percurso, a chuva começa. De onde estou, consigo ver todos fechando janelas e abrindo portas para quem quiser entrar. No fim, calculo que temos ainda uma hora antes da chegada dos feridos.

Abro a “enfermaria”, avisando a todos o que vi, e já vejo o movimento de preparação, colocando colchões forrados e ferve-se água, prepara-se alimento e macas, até que nossos “convidados” batem à porta.

-Olá?- diz quem aparenta ser o general daquela tropa – Estamos muito feridos, soubemos da existência deste mosteiro e precisamos da ajuda de vocês, meus soldados estão gravemente feridos.

Abrimos as portas e a tropa entra. O general logo se apresenta, seu nome é Bakiu Tremlaa,  e, logo de início, já conta a história de como e por que estão ali.

“Estávamos em uma batalha ao norte, contra revoltosos que reinvidicavam a devolução de impostos e posse de terras ao líder local. Meus soldados não tinham pólvora, somente nossas práticas no Wushu. Mas inesperadamente, os revoltosos utilizaram espadas e armas de fogo. Foi um massacre.

Mais da metade morreu, apesar de termos batido em retirada. Venho procurando um descanso e cuidados desde então, mas o governo já nos tomou com inúteis, mesmo com nossas habilidades”

Ofereci-me para dividir dormitório com Bakiu enquanto não havia instalações para todos, e isso aconteceu. Em certo horário, vou para o quarto, deito-me. Quando ele chega, só deita na cama posicionada abaixo da minha e dormimos silencio e impessoalmente.

E assim foi durante 3 dias.

Na manhã do 4º, o colega puxa um assunto. Pergunta meu nome e lhe respondo, friamente, Kwok Yuen. Logo me reconhece como ex-governador civil, e daí para frente criamos um tipo de amizade, uma que se desenvolve com o tempo, ficando forte a ponto de, 2 semanas depois, quando os 50 quartos para refugiados foram feitos, Bakiu permanece comigo.

Seguimos para uma rotina um pouco parecida. Acordamos cedo, e minha manhã começa com uma boa meditação no salão dos espelhos, a dele, se fechando no salão vazio. Ao fim de 2 horas, ambos se encaminham para o campo, para plantar e colher algumas coisas, pois logo em seguida, preparamos o almoço e o comemos. A diferença maior são as conversas diárias com seu antigo pelotão, enquanto eu falo com alguma alma também “desocupada”.

Certo dia, o indago sobre duas coisas: a razão das conversas com a tropa e o que faz ele todo dia no salão (o que observo ser também um hábito dos seus comparsas).

Kwok, se eu não me mostrar presente, quem vai mostrá-los o caminho?

-Ora, eles acharão o próprio caminho se deixarem-nos tentar andar com as próprias pernas.

-Entenda, eles precisam ser liderados. Essa é a natureza humana em seu mais elevado ser: uns nascem para seguir, outros guiar.

-Não é verdade- falo firmemente a Bakiu- Vejo bondade em seus atos, mas devo perguntar se não vê como esse poder que tem tanto te corrompe quanto eles.

-Eles sabem quem estão seguindo.

-E o gado só percebe a verdadeira face do pastor na hora do abate. Pergunto-lhe, se tu mandasses seus homens matarem todos nesse lugar, sem exceção, eles não o fariam?

-Naturalmente…

-Portanto, você tem uma influência não saudável sobre eles.

-Vejo seu ponto, mas não compreendo a saída que você procura.

-Bem, olhe o Templo em si. Não há um sequer líder, sim a união de diversas pessoas com um objetivo, unidas por umas vontade de viver de um jeito relativamente parecido. Aqui sim, há a forma natural que nós, seres humanos, perdemos na nossa história. Aqui sim, podemos ver a liberdade expressa em seu grau máximo, onde a minha liberdade permite a sua nunca acabar. Por esse motivo que estou, aqui, o mais próximo da minha paz.

-Desculpe a pergunta mas… você já praticou Wushu?

Já explicando, Wushu é um estilo da arte marcial chinesa, conhecida mundialmente pelo nome de Kung Fu. Essa arte é dividida em 3 partes principais de trabalho individual: corpo, mente e espírito. Apesar de morar na china desde sempre, nunca me aproximei muito, por desprezar o uso da força e achar sublime a retórica, e, posteriormente, a meditação pura. Nas minhas viagens à terra do papa Constantino, li sobre os maravilhosos Sofistas, sobre Sócrates, e admirei-os muito mais que os brutos guerreiros.

Após esse dia, descobri minha resposta para a minha outra pergunta. Todos os dias, Bakiu se punha a treinar incessantemente a Arte, até não ter mais forças para sequer subir alguns degraus de escada (sabe sei lá como que ia para as plantações). Meu amigo passa seus dias preparando-se para um conflito interno, não externo. Assim como eu, ele está perto de sua paz, mas algo falta para atingir o Nirvana.

Outras coisas também aconteceram, como o fim das conversas diárias, que foram substituídas para pequenos encontros semanais, para um treino em conjunto, com o objetivo de lutarem entre si. Todos já estavam bem, mas algo tinha mudado (tanto nos soldados quanto nos monges). Os monges, atrofiados por simplesmente meditarem e plantarem (numa espécie de ora et labora) começaram a, naturalmente, treinar Kung Fu. Os guerreiros, com remorço por toda morte e dor que causaram, por tanta inquietude, começaram a meditar. Começou algo perfeito, começou a Paz.

Bakiu me instrui no Kung Fu, onde eu finalmente encontro um momento de calma (e me torno um exímio artista) e eu o inicio  na arte da meditação.

Aos poucos, os treinos de Wushu passam a ser simultâneos, numa espécie de conexão de Shaolin inteira, sem raiva alguma, somente o perfeito equilíbrio entre o autocontrole budista e a coragem e disciplina dos artistas marciais. Nas lutas, vê-se um “problema”: ninguém ganha. Não pela falta de habilidade, mas pelo excesso e equidade dela entre todos.

Quando vou ao salão dos espelhos, fico no centro e vejo centenas de cópias minhas, todas me imitando, e começo a lutar comigo, travando um conflito apaziguado, que gera em mim a plena sensação de completude, e, depois de algumas horas meu amigo entra, e a luta passa de singular para plural. A luta começa lenta, ainda com falta de força, mas progressivamente avança, cresce, no ponto de quase não vermos os golpes de cada um.

Na hora do jantar, o sino toca e um estranho adentra o salão, trazendo uma carta,que passa de mão em mão e quando chega a minha, leio claramente:

“Aos Guerreiros do Templo de Shaolin, esta convocação para proteger o condado de Tahu.”

 

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Êxito variável

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Hoje, rezo para ninguém passar a angústia de olhar uma foto e se arrepender de algo. Pois a foto deixou um bom momento eternizado, e você percebe que perdeu um momento desses, seu pequeno sonho de agora é impossível de se completar.
Rezo para nenhum garoto precisar pensar se envia ou não uma mensagem para uma garota. Para um homem exitar no medo de receber um não como resposta, pois uma dor que nenhum ser humano deveria sentir é o arrependimento pelo que não fez. O não que o homem recebeu pôs um fim, uma definição. Não existe o medo do que poderia ter acontecido, porque aconteceu.Ao garoto enviar a mensagem, ele terá a plena calma por o fazer. Foda-se caso seja uma má decisão. É muito melhor que uma não tomada.
Talvez, ao ficar em uma viagem, mesmo não se conhecendo, um casal adolescente comesse a namorar. Quem sabe inclusive os círculos de amizade se misturem e se mantenham mesmo após o término do colégio e um dia termine. Notou? Existiriam milhares de variáveis. E todas, sem uma decisão, seriam desperdiçadas.
Por isso, deixo claro uma lição de vida de suma importância: não exite. Não se preocupe com o resultado se ele puder ser melhor do que nada. O mundo não foi feito para quem mantém. Mas para quem transforma.
 

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